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Redução de Danos para o uso de Cannabis - Xamanismo

Redução de Danos para o uso de Cannabis

Redução de danos para o uso da Cannabis

*Edward MacRae*

 

O uso generalizado da Cannabis parece remontar ao período neolítico, existindo evidências de seu emprego frequente nessa época em rituais xamânicos no nordeste asiático.

Desde então vem ocorrendo uma difusão do uso dessa planta por todo o planeta, para uma grande variedade de finalidades. Segundo a antropóloga Vera Rubin, dois grandes complexos culturais se formaram ao seu redor que ela chama de complexo da ganja e complexo da marihuana.; a primeira corrente, de natureza folk, demonstrando grande continuidade em suas tradições, que remontam a tempos imemoriais, e a segunda de configuração mais circunscrita à atualidade e originalmente mais disseminada entre grupos mais elitizados, antes de se difundir por setores mais amplos da sociedade.

 

O complexo da ganja seria multidimensional e multifuncional, envolvendo usos sagrados e profanos, e geralmente baseado no cultivo de pequena escala. Encontramos assim o emprego da planta na manufatura de cordame, na alimentação, na medicina, na religião e na vida social, em geral, como euforizante e símbolo de companheirismo. Com a exceção do uso ritual, envolvendo sacerdotes, o uso regular dentro dessa corrente tradicional geralmente se deu no âmbito das classes populares.

 

Já a segunda corrente de difusão do uso da planta abrange duas grandes linhas onde desempenha funções diferentes. A primeira, precedendo a descoberta da América, baseia-se no uso do cânhamo para fins industriais e comerciais a partir de grandes plantações localizadas principalmente na Rússia, no Canadá e nos Estados Unidos.  Essa mercadoria deu grande ímpeto às empreitadas colonizadoras das metrópoles européias e ao capitalismo mercantilista. A segunda linha, remonta ao século XIX, à formação do Club des Hachichins por artistas e intelectuais de Paris e é associada principalmente à busca por experiências psicodélicas. Difundida durante o século XX entre a juventude ocidental ou ocidentalizada em numerosos países, tem sido um fenômeno freqüentemente caracterizado como de classe média, limitada à exploração de seus aspectos psicoativos, geralmente recreacionais (Rubin 1975:3.)

 

No Brasil encontramos a presença dos dois complexos culturais. O da ganja foi introduzido pela população de origem africana, sendo, até recentemente, identificado com os negros e sua cultura, sofrendo, consequentemente a repressão exercida pela sociedade racista. O segundo é de introdução mais recente e tornou-se mais difundido na década de 1970, no bojo da contracultura. A sua grande expansão abarcou todos os setores populacionais e acabou por levar ao esquecimento quase total das antigas práticas originárias da África.

 

A partir do contato mais frequente com o emprego das propriedades psicoativas da Cannabis por parte das populações ocidentais, ocorrendo no século XIX, diferentes administrações públicas, instadas a tomar uma posição sobre o uso e comercio da substância, vêm optando pela constituição de comissões de especialistas para investigar o seu impacto sobre a saúde dos indivíduos e da sociedade. Assim, já se realizaram pesquisas sobre o tema em muitas regiões do mundo e em quase todas se chegou à conclusão de que a Cannabis é uma droga relativamente segura, embora muitos tenham recomendado que a permissão para seu uso devesse ser limitada a finalidades medicinais e que mesmo essas 3 deveriam continuar restritas até que sejam realizados todos os testes costumeiramente exigidos para a aprovação de novos medicamentos. Apesar das importantes credenciais científicas e políticas de seus proponentes e integrantes, nenhuma das recomendações dessas comissões chegou a induzir mudanças significativas na legislação, revelando a preponderância nessas discussões de outros fatores de ordem moral e política sobre considerações que se apresentam como estritamente científicas.

 

Entre esses estudos oficiais o pioneiro, e um dos mais importantes, foi realizado pelo Indian Hemp Drugs Commission, empreendido de forma minuciosa pelo governo britânico na Índia. Seu relatório final, publicado em 1894, considerava injustificada e desnecessária a proibição do uso da substância em suas várias formas.

 

Outro foi o da comissão nomeada pelo prefeito de nova-iorquino Fiorello La Guardia que, em 1944, publicou seu relatório O Problema da Marihuana na Cidade de Nova York. Seus estudos incluíam pesquisas clínicas feitas em voluntários assim como investigações sociológicas onde se concluiu que: o consumo prolongado desta droga não produz degeneração física, mental ou moral e que também não se observa nenhum efeito deletério permanente como consequência de seu uso prolongado.

 

Até então, no Ocidente, o uso da Cannabis em busca de seus efeitos psicoativos, apresentava-se como circunscrito a certos grupos étnicos ou categorias profissionais minoritários. Mas, a partir da década de 1960, ocorreu um repentino e vertiginoso aumento do seu consumo recreacional na América do Norte e na Europa, associado ao reposicionamento juventude em relação aos valores e práticas tradicionais. O alarme social provocado por isso entre a geração mais velha levou à criação de várias comissões oficiais 4 de inquérito, incluindo a da Grã Bretanha, (Wotton Committee, 1968), a da Organização Nacional de Saúde (1971), a do Canadá (Le Dain, Bertrand e outros, 1972) e a dos Estados Unidos (National Comission, 1972).

 

Essas comissões produziram extensos e bem pesquisados relatórios que enfatizavam a baixa periculosidade apresentada por esse consumo, embora apontassem para a necessidade de um aprofundamento das pesquisas sobre o tema. Durante certo tempo houve um aumento no interesse científico pelo assunto, mas este entrou em declínio quando o uso por parte da juventude ocidental deixou de ser novidade, o consumo começou a diminuir e verbas para pesquisa começaram a escassear. Porém, na década de 1990 o interesse dos cientistas e do público voltou a crescer, devido a novas descobertas envolvendo receptores de canabinóides no cérebro e os canabinóides endógenos, apontando para a possibilidade de novos usos terapêuticos dos canabinóides. Outro fator importante foi a crescente preocupação com os custos sociais e econômicos da manutenção de políticas proibicionistas, que pareciam superar aqueles gerados pelo uso em si .

 

A própria Organização Mundial de Saúde sentiu a necessidade de atualizar seus pareceres sobre o tema convocando um novo painel de pesquisadores que acabou por publicar um relatório final em 1997. Este, porém, omitia alguns dos estudos inicialmente encomendados que apontavam para uma menor periculosidade do uso da Cannabis, em comparação com os do álcool e tabaco. Isso foi objeto de um artigo publicado pela prestigiosa revista inglesa de divulgação científica New Scientist, que atribuía essa omissão a pressões exercidas pela National Institute on Drug Abuse(NIDA) dos Estados Unidos e pelo Programa Internacional das Nações Unidas para o Controle das Drogas(UNDCP). Esse artigo teve repercussão internacional e a polêmica levantada acabou ensejando, em 1999, a publicação de uma coletânea, mais completa e atualizada, de todos os estudos produzidos por essa comissão, incluindo as considerações que haviam sido excluídas do relatório oficial. A ela foi acrescentada uma introdução onde se afirmava que, embora representando os julgamentos e interpretações científicos de seus autores, ela não deveria ser tomada como representando as posições ou políticas oficiais da Organização Mundial da Saúde ou dos outros órgãos patrocinadores dos estudos originais (Kalant et ali, 1999).

 

Apesar de indicar que, dentro dos atuais padrões de uso, a Cannabis apresentasse um problema de saúde pública muito menor do que as drogas lícitas, esses estudos apontam para a existência de alguns riscos para a saúde nesse uso. Segundo eles, os mais prováveis riscos atribuíveis ao uso crônico e pesado da Cannabis seriam: o desenvolvimento de uma síndrome de dependência, o aumento do risco de envolvimento em acidentes com veículos motorizados, um aumento no risco de desenvolver bronquite crônica, câncer no aparelho respiratório, o nascimento de crianças abaixo do peso normal entre mães que fumam durante a gestação e um aumento do risco de esquizofrenia entre indivíduos já propensos a essa condição(Kalant et al. 1999:495).

 

De todos esses riscos, o mais potencialmente prevalente seria o da dependência. Ao pensar sobre esse tema deve-se levar em conta as dificuldades que a medicina vem encontrando em definir dependência a uma substância. Atualmente os critérios mais utilizados para o reconhecimento científico de sua ocorrência são os elaborados pela Associação Americana de Psiquiatria e publicados nos seus manuais DSM III-R (1987) e IV( 1999).Esse enfoque difere bastante de concepções anteriores, dispensando-se agora a obrigatoriedade de se constatar a presença de tolerância ou dependência, bastando a 6 referência a certas dificuldades de ordem psicológica e social. Mas, em alguns casos, este tipo de dificuldade poderia ser mais decorrente do status ilícito de certas substâncias do que de suas atuações sobre o organismo, levando ao risco da medicalização de problemas de ordem sócio-cultural.

 

A nova classificação levou a um aumento na constatação de prevalência de dependentes de Cannabis, o que vem sendo contestado por aqueles que sustentam que ela não deve ser considerada como provocadora de dependência ou adicção, uma vez que seus consumidores podem deixar de usá-lo a qualquer momento, por sua própria vontade. De fato, poucos usuários parecem procurar tratamento para esse tipo de dependência, ocorrendo também uma alta taxa de remissão espontânea dos sintomas (Kalant et ali, 1999:483 e 491). O próprio critério de uso frequente, (ou seja, que o indivíduo costuma fazer uso da substância), que o senso comum pareceria exigir na atribuição de dependência, deixa de ser considerado essencial, segundo essa nova forma de classificação. Assim, por exemplo, o I Levantamento Domiciliar Sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil só registra um total de 6,9% de uso na vida de maconha (o que pode incluir um ou poucos incidentes, de pequeno ou nenhum impacto, ocorridos em qualquer momento, em toda a vida do respondente). Esse relatório do levantamento deixa de fornecer os dados sobre uso frequente, que seriam os verdadeiramente significativos na discussão sobre efeitos do uso. Segundo explicação da publicação: Os dados de maconha referentes ao uso frequente não estão apresentados devido às prevalências serem muito baixas em todas as faixas etárias. Algo que pode ser interpretado como falta de significância estatística. Porém, isso não impede o registro de 1% de casos de dependência, avaliados segundo critérios do National Household Surveys on Drug Abuse (NHSDA), derivados do DSM-III-R (Carlini et al 2002:68). Ao leitor resta a indagação sobre a pertinência de se classificar como dependente alguém que faz pouco uso da substância.

 

Mas, até mantendo-se como referência esses critérios, o perigo de criação de dependência dessa substância é relativamente baixo. Kalant (1999:489), resenhando diversas pesquisas científicas cita estudo de Anthony, Warner e Kessler de 1994, realizados nos Estados Unidos e que indicam que 9 % dos que fizeram uso na vidada maconha naquele país tornam-se dependentes em comparação com os 32% do tabaco, 23% dos opióides e 15% do álcool.

 

Esse grau de risco é tão baixo que muitos autores têm considerado a Cannabis como não causadora de dependência. Outros, porém, sem se alinharem no campo dos que se opõe a qualquer tipo de uso da Cannabis, têm chamado atenção para a pertinência da questão da dependência à substância. Especialmente relevantes nesse ponto são as considerações do médico naturalista americano, Andrew Weil, conhecido por sua abordagem tolerante a respeito do uso de psicoativos e outras técnicas de alteração da consciência. Embora reconheça que a síndrome de abstinência da maconha seja pouco intensa ou duradoura e que sua dependência seja bastante diferente daquela de qualquer outro psicoativo, considera que ela certamente ocorre e tem se tornado mais comum com o crescimento do seu uso. Na sua forma mais aguda ela se manifestaria como um hábito de fumar incessantemente durante o dia inteiro, num padrão de uso parecido ao de muitos dependentes de nicotina.

 

Também ocorreria um processo de tolerância à maconha. Neste até as variedades mais fortes parecem perder sua força, quando fumadas incessantemente. Isso levaria usuários a buscar variedades com ainda maiores concentrações de THC, para atingirem o mesmo nível de barato. Mas, ocorrendo isso, ele sugere que tudo que esses indivíduos precisariam fazer seria diminuir sua frequência de uso, já que até um intervalo de vinte e quatro horas no consumo pode restabelecer a sensibilidade aos efeitos dessa substância (Weil e Rosen 1998:120). Outra pesquisa, realizada no Brasil, relata que usuários registram o surgimento de tolerância em relação a amostras específicas da planta, não deixando, porém, de sentir efeitos prazerosos com erva de outra procedência ou então após breve interrupção no uso (MacRae e Simões 200:99).

 

Embora existam relatos apontando para a ocorrência, entre usuários pesados, de uma chamada síndrome amotivacional caracterizada por apatia, reclusão e falta de motivação, não há documentação convincente de uma verdadeira síndrome o que tem levado pesquisadores a considerar que ao invés de inventar uma nova síndrome psiquiátrica, seria mais razoável considerar uma motivação diminuída como sintoma de intoxicação crônica pela Cannabis (Kalant 1999:277). Mas, indivíduos com propensão a doenças mentais como a esquizofrenia devem evitar o consumo da Cannabis, pois estudos tem mostrado que esse uso pode exacerbar os sintomas da doença em indivíduos já afetados (Kalant 1999:282).

 

Apesar dos diversos posicionamentos a favor, até recentemente somente um país, a Holanda, havia despenalizado o uso e o pequeno comércio da Cannabis. Lá, a partir de 1976, passou-se a permitir que certos cafés vendessem pequenas quantidades de maconha ou de haxixe, para serem consumidos no local ou em casa. Essa política, um exemplo clássico de redução de danos, procura, através da regulamentação do tráfico, separar o consumo de produtos canábicos daquele das drogas vistas como mais pesadas, como os opiáceos. Hoje existem mais de mil desses estabelecimentos, onde não se permite que se estoque mais de 500gr. de Cannabis e onde não se pode vender bebidas alcoólicas ou outras drogas psicoativas. Também estão vedados: a publicidade, a venda para menores e qualquer incômodo aos vizinhos.

 

Após vinte anos de despenalização, os níveis atuais de consumo da Cannabis entre jovens holandeses são comparáveis ao de outros países europeus e mais baixo que o americano. Por outro lado, o consumo de opiáceos na Holanda, parece ter se estacionado em uma determinada geração, que está envelhecendo sem conseguir recrutar muitos novos adeptos entre os mais jovens. Além disso, enquanto em 1995 o número de dependentes de heroína holandeses para cada 100.000 habitantes era de 160, nos Estados Unidos era de 430. Mas continua a existir um problema relacionado à venda por atacado dos produtos, já que o dono do café não dispõe de respaldo legal para compra seu próprio suprimento, uma vez que acordos internacionais dos quais a Holanda é signatária não permitem a plena legalização do tráfico. Consequentemente o país ainda tem dificuldades com a economia paralela que se desenvolve em torno do mercado atacadista de produtos canábicos. (Iversen 2001:304-318). Mesmo assim, seu exemplo tem estimulado outros paises a discutir a adoção de políticas semelhantes e hoje, alguns cantões da Suíça, por exemplo, já permitem uma comercialização controlada da Cannabis.

 

 

Controles sociais informais do uso da Cannabis

 

O conhecimento mais detalhado da psicofarmacologia da Cannabis ainda apresenta muitas lacunas, sabendo-se pouco, por exemplo sobre os efeitos em longo prazo das diferentes maneiras de se consumir essa substância. Assim, persiste a polêmica sobre políticas oficiais a serem adotadas a respeito da criminalização ou liberação do seu uso. A discussão desse tema torna-se ainda mais difícil devido à natureza ampla dos efeitos a serem apreciados e que extrapolam considerações puramente fisiológicas. Abordagens mais completas do tema exigem também considerações de natureza psicosociocultural. A discussão sobre o uso de substâncias psicoativas inevitavelmente tem que lidar com temas relacionados à questão dos valores relativos da saúde física individual vis-à- vis aqueles da paz social, da autonomia do sujeito visa aqueles das normas da moral hegemônica.

Nestes campos não há soluções consensuais e é difícil escapar do de noções preconcebidas. Os aspectos psicosocioculturais da questão nem sempre podem ser detectados pelas metodologias quantitativas, consideradas as únicas verdadeiramente científicas por uma grande parcela dos praticantes das ciências da saúde, a quem atualmente costuma-se atribuir a primazia do discurso legítimo sobre o tema. Mas isso não tem impedido que diversos estudiosos de outras áreas de conhecimento discutam a relevância de fatores que extrapolam o âmbito daquelas ciências.

 

Richard Bucher defende a idéia de que não existe droga a priori, considerando que, no estudo da evolução da toxicomania, mais do que o efeito puramente fisiológico da droga, o que importa é compreender a interpretação que o indivíduo dá à sua experiência, ao seu estado e à motivação que o impele a um consumo repetido da droga. (Bucher et al; 1992:160-162). Ou seja, ao estudar o efeito de drogas como a Cannabis, não se poderia considerar a substância isolada da subjetividade do usuário.

 

Mas, além dos aspectos diretamente relacionados à psique dos usuários, Bucher, assim como outros autores, como o antropólogo Gilberto Velho, têm chamado atenção para a relevância de considerações de ordem política e social tais como a maneira como o mito do maconheiro tem servido para fins conservadores, criando bodes expiatórios apontados como inimigos públicos, utilizando-os para desculpar os mal-estares na sociedade e para justificar os esforços de controle e repressão como garantia de segurança pública. Segundo diz Richard Bucher:

 

No uso desse mito, denuncia-se a máfia das drogas, mas para colocar-se, paradoxalmente, ao serviço de uma outra, merecendo o apelido de máfia antidroga operando nos bastidores dos poderes constituídos. Infiltrando-se ali com tentáculos astuciosamente articulados, ela consegue, hoje ainda, angariar para os seus propósitos defensivos (se não belicistas) o grosso dos parcos recursos disponíveis.(Bucher 1996:59). Gilberto Velho, por seu lado, aponta a dimensão política da acusação de drogado que também seria utilizada com a finalidade de manter o status quo servindo à clássica tentativa de gerações mais velhas exercerem controle social sobre as mais novas (Velho 1981:58)

 

Adiala, discutindo o processo que levou à criminalização da maconha confirma que no Brasil, assim como nos Estados Unidos, ela teria servido, em sua época para reforçar medidas repressivas cujo objeto eram determinadas minorias étnicas identificadas com o seu uso. Enquanto lá se tratava da população de migrantes de origem mexicana, aqui os visados eram os negros quando, em 1936, a promulgação ocorreu, após violentas campanhas de cunho declaradamente racista. Estas retratavam o costume de fumar Cannabis como a vingança do derrotado, enfatizando a sua origem africana. Associavam seus efeitos aos dos opiáceos (daí a utilização da expressão ópio do pobre) e apresentavam-no como uma ameaça à raça brasileira. Muniu-se, assim, as autoridades de novos pretextos para manter a população negra, então considerada classe perigosa, sob vigilância. Qualquer negro tornava-se suspeito de ser maconheiro ou traficante e, portanto, passível de ser revistado e detido (Adiala 1986).

 

Posteriormente, na década de 1970, quando os jovens de classe média se apresentavam como importantes contestadores do ethos conservador que a ditadura militar procurava impor ao país, a identificação do uso dessa substância com a chamada cultura alternativa, serviu a propósitos repressivos semelhantes direcionados contra esse segmento da população (MacRae e Simões 2003:96).A Lei 6368, promulgada em 1976, não fazia uma distinção clara entre o tráfico de drogas (posteriormente classificado como crime hediondo, radicalizando seu potencial repressivo) e porte para uso próprio, sujeitando uma grande parcela da população, em sua maioria cidadãos honestos e produtivos, a graves riscos de danos físicos, psíquicos e sociais, muito maiores que os se alega resultarem do uso da Cannabis. . Isso dificulta o desenvolvimento de maneiras mais tranqüilas dos usuários conseguirem seus suprimentos, penalizando severamente, por exemplo, sua prática corriqueira de formar cooperativas para realiza uma compra coletiva maior, com a intenção de reduzir os contatos com o submundo do crime e seus perigos. Pequenas plantações caseiras, objetivando uma produção isenta de aditivos químicos, também expõem seus cultivadores à acusação de tráfico. Outro conceito jurídico deixado pouco claro nessa lei é o de apologia do uso de drogas, cuja apenação dificulta muitas iniciativas de redução de danos ao ameaçar qualquer discussão ou divulgação de formas menos danosas de uso.

 

Os contextos sociais políticos e culturais desempenhariam também importante papel nos próprios padrões de uso das drogas, assim como na determinação de muitas das suas consequências. Becker discute a importância do saber sobre as substâncias que se desenvolve entre os usuários, influenciando como ele as usa, interpreta e responde aos seus efeitos. Em um estudo sociológico pioneiro sobre usuários de maconha, inicialmente publicado em 1953, ele chamou atenção para a necessidade de um aprendizado social para que os seus efeitos pudessem ser obtidos, reconhecidos e apreciados (Becker 1966:46). Além disso, haveria, segundo ele, a necessidade de se participar de um grupo que incentivasse o usuário a enfrentar os interditos sociais e seguir pela carreira do maconheiro, passando pelas etapas de iniciante,usuário ocasional e usuário regular (Becker 1976:60).

 

Uma vez que a difusão do saber sobre as drogas é função da organização social dos grupos em que as drogas são usadas, os efeitos do uso refletirão ou estarão relacionados de alguma forma com cenários sociais. Torna-se, portanto necessário refletir também sobre o papel do poder e do conhecimento nesses cenários (Becker 1976:202). Em outro estudo o autor comenta como mudaram as consequências relacionadas ao uso massivo da maconha entre a juventude americana. Apesar de originalmente esse uso haver levado a numerosos casos de psicose, com o passar do tempo, esses casos diminuíram em termos relativos, devido à difusão do conhecimento sobre essa droga e a natureza passageira de seus efeitos, tanto entre os médicos quanto entre os usuários (Becker 1980:183).

 

A importância dos aspectos psicosociais no uso de substâncias psicoativas foi reconhecida nas pesquisas realizadas no final da década de 1970 pelo médico americano Norman Zinberg entre usuários de opiáceos, cannabis e alucinógenos (Zinberg 1984). Ele se interessou especialmente pelo que chamou de uso controlado de psicoativos, caracterizado por seus baixos custos pessoais e sociais e, em boa medida determinado por controles sociais organizados em torno de sanções sociais e rituais sociais. “Sanções sociais” seriam as normas que definem se e como determinada droga deve ser usada.

Incluiriam tanto os valores e regras de conduta compartilhados informalmente por grupos (embora freqüentemente de maneira não explicitada) e as leis e políticas formais que regulamentam o uso de drogas. Já os “rituais sociais” seriam padrões estilizados de comportamento recomendado em relação ao uso de uma droga. Eles seriam aplicados aos métodos de aquisição e administração da substância, à seleção do meio físico e social para usá-la, às atividades empreendidas após o uso, e às maneiras de evitar efeitos indesejados.

Dessa forma, esses rituais reforçariam e simbolizariam as sanções sociais. Os controles sociais para todas as drogas, lícitas ou ilícitas, atuariam em diferentes contextos sociais, indo desde grupos muito grandes, representativos de uma cultura como um todo, até pequenos grupos específicos. Sua vigência se aplicaria de maneira variada em diferentes momentos.

 

Realizando sua pesquisa com usuários de maconha vinte cinco anos depois da primeira publicação do estudo de Becker, Zinberg constatou que muitas das conclusões do sociólogo continuavam válidas. Apesar do grande crescimento no uso da substância nos Estados Unidos durante esse tempo, os usuários novatos continuavam a se mostrarem apreensivos sobre suas primeiras experiências, refletindo os temores do grande público sobre as possibilidades dessa droga os levarem à dependência e à loucura, assim como continuavam preocupados com o seu status ilícito. Os novatos continuavam a depender de alguém com mais experiência que os mostrassem como fumar corretamente e frequentemente relatavam terem ficado decepcionados ao não se sentirem de barato na primeira vez que usaram a substância.(Zinberg 1984:83).

 

Nesse estudo o uso encontrado da maconha era pouco ritualizado, podendo ocorrer numa grande variedade de ambientes e circunstâncias. Usuários controlados podiam fumar a sós ou acompanhados. Estes não se reuniam especificamente para fumar, mas pela sociabilidade sendo que a droga era simplesmente vista como um acessório para a ocasião. Tal flexibilidade do ritual seria parcialmente explicada pela leveza e transitoriedade dos efeitos e pela maneira mais tranqüila de amplos setores sociais conceberem o seu uso. Este, embora ainda ilícito, era visto como envolvendo uma droga levede amplo uso na população. Havendo perdido muito de sua aura desviante, o uso de Cannabis agora prescindiria dos antigos rituais determinados principalmente pela necessidade do ocultamento dessa prática. Ao mesmo tempo sanções sociais para o uso controlado haviam se consolidado e eram encontradas entre a maior parte das subculturas usuárias. Nessas condições, atualmente muito já pode ser aprendido sobre o uso controlado, antes de uma primeira experiência de consumo da substância.

Embora os rituais de iniciação ao uso continuassem a existir, os novatos rapidamente ultrapassavam essas primeiras situações altamente estruturadas e adaptavam seu uso a uma variedade de diferentes situações sociais. Isso não significava que os usuários controlados faziam um uso desordenado e perigoso, mas que os antigos controles externos rígidos haviam sido substituídos por sanções sociais mais gerais, embora ainda efetivos. Tampouco ocorreria um descarte total dos rituais sociais de consumo. Embora o compartilhar de um baseado entre um grupo de amigos tenha deixado de ser visto como essencial, essa prática ainda era muito comum e continuava a ter uma função na redução de danos, servindo para ajudar o usuário a ajustar a intensidade do barato. O tempo que transcorre entre as inalações permite-lhe monitorar seu grau de intoxicação.

Com o desenvolvimento de maior familiaridade com todos os aspectos do uso da maconha, estas sanções, assim como as para o uso de álcool, foram internalizadas e os rituais que se desenvolveram para apoiar as sanções não precisam mais ser seguidos de forma tão rígida. Significativamente, os pesquisadores tiveram muito mais dificuldades em encontrarem usuários de maconha abusadores do que controlados (Zinberg 1984:136- 137).

Pesquisa realizada em São Paulo e Salvador, entre usuários de Cannabis considerados socialmente integrados, também detectou a formação e a vigência de uma cultura da maconha. Assim como fez Zinberg nos EUA, esse estudo demonstrou uma tendência no Brasil à internalização das sanções sociais, que tem permitido um afrouxamento dos rituais sociais. O contato com seus pares nas rodas de fumo ajudaria os indivíduos a desenvolverem suas estratégias de consumo controlado. Através da troca de experiências, os usuários aprenderiam a distinguir as atividades em que a maconha servia como facilitador, inspirador ou complemento agradável, daquelas em que agia como perturbador ou empecilho.

No curso da carreira desses fumantes brasileiros, constatou-se o estabelecimento de um crescente autocontrole sobre os efeitos e sensações proporcionados pela substância, até seu uso integrar-se plenamente à vida cotidiana. Nesse momento a roda de fumo deixava de ser importante como ritual de controle, para ser substituída por sanções internalizadas, passando a ser comum o uso solitário. Além disso, o contato com seus pares da roda de fumo serviu para lhes transmitir novas formas de perceberem a si mesmos e ao mundo. Em todos os casos estudados, essa experiência era vista como referência importante para a orientação da conduta dos sujeitos, mesmo que posteriormente deixassem de emprestar ao ato de fumar maconha qualquer significado especial ou transcendente. (MacRae e Simões 200:136).

Mais recentemente, o modelo de Zinberg para o uso controlado de substâncias psicoativas foi retomado por um cientista social holandês, Jean-Paul Grund, em pesquisa realizada sobre os rituais de uso de heroína e cocaína em Rotterdam. Mas, para este, esse modelo não explicaria satisfatoriamente as variações intragrupais encontradas na habilidade de seus sujeitos de estudo em se beneficiarem efetivamente desses controles sociais. Tampouco dava conta da natureza multidimensional dos processos de autorregulação, pois além das normas e rituais a teoria deixava de tratar de maneira explicita de outros fatores que podem ter impacto sobre os controles sociais. Grund considera a teoria de Zinberg demasiadamente estática e propõe, portanto, algumas adaptações e elaborações. Assim, ele introduz dois novos fatores ao modelo: a estrutura de vida do usuário e a disponibilidade da droga.

Por “estrutura de vida” são entendidas as atividades regulares, tanto as convencionais quanto as relacionadas à droga, que estruturam os padrões da vida quotidiana. Aí também se incluem as relações pessoais, os compromissos, obrigações, responsabilidades, objetivos, expectativas, etc., mesmo que não primariamente direcionados à droga. Uma disponibilidade adequada das substâncias, que evitasse que a sua simples aquisição se tornasse o único foco de interesse do usuário, também seria importante para permitir o desenvolvimento das sanções e dos rituais sociais. As normas, regras e rituais determinariam e constrangeriam os padrões de uso da droga, evitando uma erosão na estrutura de vida, uma vida altamente estruturada permitiria que o usuário mantivesse a estabilidade na disponibilidade da droga, essencial para a formação e manutenção de regras e rituais. A auto-regulação do consumo de drogas e seus efeitos seriam, portanto, questão de um equilíbrio (precário) em uma corrente de retroalimentação circular.

Em sua conclusão Grund enfatiza que o uso de drogas (mesmo as pesadas) não leva, necessariamente, a padrões de uso descontrolados ou nocivos. Embora o uso de psicoativos possa tornar-se uma atividade predominante, ela é raramente uma atividade isolada e é, geralmente, social. Padrões de uso (quem usa o que e como) seriam sujeitos a diversos determinantes como: disponibilidade, tendências pessoais e padronização cultural. Alerta, também, para o fato de que embora o modelo seja circular, ele não é um circuito fechado independente; os três elementos do trio (disponibilidade da droga; valores, regras e rituais; estrutura de vida) sendo sujeitos a variáveis e processos externos distintos que vão desde fatores psicológicos pessoais e culturais até regulamentos oficiais e considerações mercadológicas. Grund considera que, portanto, o uso de psicoativos não pode ser isolado do seu contexto social e, concordando com Zinberg, afirma que o controle sobre o uso dessas substâncias é principalmente determinado por variáveis sociais (Grund 1993: 237-254).

A perspectiva desenvolvida por Grund parece especialmente adequada para a avaliação de certos grupos de orientação religiosa, como os rastafarianos (Barret1988:128) e outras linhas (MacRae, 1992:73 e 1998), cujas doutrinas admitem o uso sacramental da Cannabis como propiciador de estados de transe místico. Essas religiões promovem e regulamentam aspectos da vida pessoal e social dos seus adeptos referentes aos elementos controladores do uso elencados por aquele pesquisador. Ao longo de sua história elas desenvolveram uma série de normas e de rituais sagrados para nortear o consumo do enteógeno, mas o status ilegal dessas práticas impossibilita a consolidação de rituais públicos de uso. Assim, mais uma vez, a política proibicionista acaba por dificultar o controle do consumo. Deixa de mobilizar os poderosos controles normativos, rituais e sociais em geral de que dispõe essas organizações religiosas. São bastante conhecidos os seus princípios puritanos e a eficácia de sua regulamentação, às vezes um tanto rígida, de outros aspectos do comportamento de seus adeptos: como no uso de bebidas alcoólicas e na estruturação de suas vidas sexuais.

Desperdiça-se a importante contribuição que esses movimentos religiosos poderiam dar, ajudando a retirar do uso dessa substância sua atual conotação de malandragem ao enfatizar seus potenciais aspectos espirituais e ordeiros. Algumas sugestões para reduzir danos decorrentes do uso da Cannabis Transportando para a prática algumas das idéias desenvolvidas por Becker, Zinberg e Grund, entre outros, podemos sugerir que seria importante adotar as seguintes medidas para reduzir os danos associados ao uso de substâncias psicoativas em geral e da Cannabis em particular:

a) Reconhecendo que os piores danos do uso da Cannabis advém do seu status ilícito, defender a legalização e regulamentação da disponibilidade dessa substância e seus derivados e, possivelmente, dos psicoativos em geral. Ajudaria-se, assim, a evitar o desenvolvimento de estruturas criminosas e violentas associadas ao tráfico e a assegurar um controle de qualidade. Valeria também reconhecer a importância de usos formais e ritualísticos de enteógenos, como modelos de redução de danos.

b) Enquanto ainda predominam políticas proibicionistas, buscar parcerias com faculdades de direito para constituir grupos de defesa jurídica para usuários presos pela polícia, e procurar contatos com órgãos de defensoria pública, chamando sua atenção para problemas específicos dos usuários de drogas em sua relação com a lei.

c) Fomentar a disseminação e a discussão em torno dos saberes eruditos e leigos existentes a respeito dos psicoativos. Para tanto serviriam publicações dos mais diversos tipos, a criação de sítios na Internet e a constituição de grupos de discussão para usuários.

d) Apontar que, embora relativamente inócuo, o uso da Cannabis não deixa de apresentar seus perigos, assim como o de outras drogas, lícitas ou ilícitas, sendo indicada a busca de estratégias para reduzir seus danos.

e) Reduzir o sensacionalismo em torno do tema, chamando atenção para aspectos mais amplos do uso de psicoativos lícitos e ilícitos, deixando de enfocar exclusivamente a Cannabis. Paralelamente é importante desmitologizar a figura do traficante, já que sua representação atual como uma poderosa ameaça à ordem social instituída o torna um modelo extremamente atraente para aqueles que se sentem excluídos de seus benefícios, além de dificultar abordagens mais eficazes para os diversos problemas que o uso de drogas apresenta de fato para a saúde física, psíquica e social da população.

f) Incentivar discussões inter e intrageracionais sobre o tema de maneira isenta de preconceitos. Para tanto se podem incentivar debates nas escolas, famílias, grupo de jovens, etc, sobre a questão, deixando aflorar novas perspectivas e sugestões.

g) Evitar posturas de censura, tanto em discussões familiares quanto públicas sobre o tema e buscar incentivar o desenvolvimento de normas, regras de conduta e rituais sociais relacionados aos: métodos de aquisição e consumo, à seleção do meio físico e social para o uso, às atividades empreendidas sob o efeito da substância e às formas de evitar efeitos indesejados.

h) Promover uma melhoria na estruturação da vida do usuário, combatendo sua marginalização econômica, social e cultural. Tendo em vista a estrutura essencialmente desigual e pouco democrática da nossa sociedade, isso pode parecer irrealista por ser demasiadamente ambicioso, mas a instituição de programas, oficiais ou não, de redução de danos e a criação de grupos de usuários são passos iniciais que podem ser tomados nessa direção.

i) Promover serviços de atendimento psicológico e social especializados para aqueles que apresentam dificuldades em estabelecer uma relação controlada com a substância. Estes poderiam visar o deslocamento do lugar ocupado pela droga na vida do usuário, de maneira a retirar a sua centralidade e diminuir sua carga simbólica e afetiva. Mais concretamente, em relação à abordagem direta de usuários da Cannabis podemos fazer algumas sugestões complementares:

Primeiramente, sempre adotando uma posição de diálogo franco e democrático, lembrar a eles a natureza ilícita de suas práticas e as severas sanções penais às quais se expõe. Na persistência da intenção de uso, sugerir e reforçar normas, regras de conduta e rituais sociais condizentes com o uso controlado, incluindo modos de evitar efeitos indesejados e a importância de se escolher ambientes físicos e sociais de natureza tranquila e protetora para o uso.

Incentivar debates sobre as melhores maneiras de fazer frente aos piores perigos apresentados pelo uso ilícito da Cannabis: a violência da repressão e do submundo do tráfico de drogas ilícitas. Conscientizar os usuários de seus direitos legais e discutir formas de evitar contato desnecessário com os traficantes; levantar os prós e contras de estratégias como a formação de cooperativas de compradores ou o desenvolvimento de pequenas plantações caseiras.

Promover a conscientização do usuário sobre quais os benefícios que busca, e atentar para a importância de se impor limites ao uso, para que este não se torne um simples hábito acompanhado de tolerância aos princípios ativos da Cannabis e deixando de prover satisfação. Quando isso ocorre o usuário pode considerar mudar seu padrão de uso, buscando a potencialização dos efeitos através da redução no consumo e não na busca incessante por variedades mais potentes ou no aumento da sua frequência. Na persistência de problemas na relação com a substância o usuário deveria considerar a possibilidade de buscar o auxílio de profissionais especialistas no tratamento de toxicomanias.

Além de evitar usar o psicoativo por simples conformismo a padrões de comportamento grupais ou só porque está disponível, o usuário deve pensar sobre o melhor momento para seu uso, levando em conta as suas necessidades de estudo e trabalho. Para isso pode também procurar identificar as atividades são mais adequadas ao seu estado de barato, evitando, assim, o uso dessa substância quando isso possa ser um fator de perturbação. Alguns usuários alegam poder ler, estudar e se concentrar melhor sob efeito do Cannabis, outros dizem o contrário. Certas atividades simples e repetitivas como varrer a casa ou capinar um terreno podem se tornar mais agradáveis, outras, requerendo precisão e coordenação psicomotora, reflexos rápidos e orientação espacial, como a condução de veículos, são dificultadas e devem ser evitadas. A ingestão de bebidas alcoólicas e a sonolência agravam ainda mais essas perturbações. Assim, cada um deve buscar um autoconhecimento em torno dessas questões, uma vez que os efeitos de psicoativos tendem a variar de indivíduo para indivíduo.

Embora pesquisas médicas tenham demonstrado uma relativa inocuidade da Cannabis, é indubitável o efeito danoso ao sistema respiratório de se inspirar grandes volumes de fumaça, seja qual for a sua origem e composição. Assim, torna-se importante discutir maneiras de se realizar o consumo de formas mais eficientes e menos agressivas para o organismo. Com essa finalidade, se pode discutir a relevância de diversas sugestões de redução de danos como as seguintes, colhidas entre usuários e em documentos que circulam nos ambientes onde se usam produtos canábicos na Europa e na Austrália. Evitar reter o fumo no pulmão mais que alguns segundos. Isso basta para absorver grande parte do THC, o resto do tempo representando uma exposição desnecessária aos componentes cancerígenos do fumo como o alcatrão.

Evitar a presença de fungos que possam afetar o sistema respiratório (pode-se sugerir deixar a Cannabis ao sol ou aquecê-la no forno brando), assim como produtos químicos, como amônia, que podem vir misturados com a droga (nesse caso recomenda-se deixar o produto imerso em água durante algumas horas e depois secá-lo ao ar livre ou em forno brando). Igualmente, ao enrolar baseados, seria recomendável usar papel fino, desprovido ao máximo de corantes e outros produtos químicos, sendo também importante evitar maricas e cachimbos de plástico ou outros materiais que possam soltar vapores tóxicos ao serem aquecidos.

Evitar um fumo demasiadamente quente, deixando de fumar pontas, utilizando cachimbos de água, ou, mais simplesmente, improvisando um cachimbo com a mão (prendendo o baseado entre os dedos, fazendo um oco com a mão fechada e aspirando através dele).

Não usar filtros de cigarros em baseados, já que eles podem reter muito do THC e aumentam a absorção de tóxicos como o alcatrão. Atualmente já existem na Europa vaporizadores e outros produtos que permitem inalar os vapores de THC sem levar a Cannabis à combustão. São especialmente recomendados para usuários debilitados que consomem a substância com fins medicinais.

Aqueles com a imunidade prejudicada ou que estejam consumindo maconha na companhia de pessoas sofrendo de doenças transmitidas pela saliva, devem evitar a exposição a patógenos, deixando de colocar a ponta do baseado diretamente na boca. Isso pode ser feito da maneira já descrita acima, onde o baseado é fumado através de um oco formado com a mão fechada.

O aparecimento de dificuldades em respirar, tosses constantes ou outros problemas do aparelho respiratório podem sinalizar danos sendo causados pelo fumo.

Nesses casos, tal como com tabagistas, é recomendável a cessação ou redução no uso e, possivelmente, a adoção de outras vias de consumo, tal como a ingestão de comidas preparadas com Cannabis. Esse antiquíssimo método de consumo tem, porém, suas especificidades e difere do fumar especialmente em relação ao controle da dosagem.

Quando se consome a Cannabis em bolos, doces, etc, os efeitos da ingestão levam entre 30 e 60 minutos para se manifestar. Isso torna fácil um consumo de quantidades excessivas do produto por aqueles acostumados a sentir os efeitos imediatamente após as primeiras inspirações de fumo. Além disso, o fígado produz um metabolito denominado 11-hidroxi-THC, que é de 4 a 5 vezes mais potente que o THC. Embora a overdose de THC não seja fatal, ela pode ser desagradável e durar várias horas.

Mulheres grávidas devem levar em conta os riscos ao feto apresentados pelo hábito de fumar, tanto tabaco quanto maconha. Embora o tema ainda seja controverso, há evidências de que o uso da substância durante a gravidez pode produzir efeitos sutis no nascituro e até afetar suas capacidades de aprendizagem em anos posteriores (Kalant 1999:425).

Mesmo baixas doses de THC costumam causar dilatação nas veias sanguíneas nos olhos, tornando-as mais visíveis. Embora não haja evidência de nenhum risco maior, pessoas com conjuntivite, ou olhos inflamados, deveriam levar isso em consideração. Não é recomendável o uso de colírios que constringem essas capilares para esconder a vermelhidão bandeirosa (Conrad 2001:118).

Atentar para os efeitos sinergizantes da mistura da maconha com bebidas alcoólicas e outras drogas, assim como para o efeito devastador da larica em programas de regime alimentar, etc.

Lembrar que indivíduos com propensão a certas doenças mentais, como a esquizofrenia, devem evitar o consumo de Cannabis que pode desencadear crises em indivíduos suscetíveis.

Conclusões finais

Mas, apesar da relevância de várias das indicações voltadas para as minúcias das práticas de uso da Cannabis, não parece demasiado reiterar os comentários a respeito da relativa inocuidade da substância em si e dos perigos apresentados pela ilicitude do seu uso e distribuição, tanto aos cidadãos em geral (sejam eles usuários ou não) quanto à organização social como um todo, devido à corrupção e arbitrariedade que esse status legal suscita. Assim, torna-se de suma importância mudar a maneira como a sociedade, vem se relacionando com as substâncias psicoativas em geral e com seus usuários. Ao discutir a questão da descriminalização do uso não se pode deixar de lado a questão do fornecimento da substância, o outro lado dessa moeda. Lembra-se também que a disponibilidade da droga é um fator importante para o desenvolvimento de regras e rituais mais eficazes em assegurar um uso mais controlado e menos danoso.

Igualmente, deve-se lembrar que em grande parte as dificuldades encontradas no uso de drogas são devidas a problemas sociais de ordem mais ampla. O reconhecimento da importância do usuário ter uma vida bem estruturada, em termos de ocupação de tempo, renda, obrigações sociais e afetivas, deve voltar nossa atenção para a necessidade de se prover melhores condições de emprego, saúde, educação e inclusão social para as populações que demonstram maiores dificuldades em suas relações com as substâncias psicoativas. Ao invés de concebidas como perigosas ameaças à ordem institucional, seriam mais bem vistas como suas grandes vítimas.

Como último ponto, levando em conta o papel importante no agravamento da crise de saúde nacional desempenhado pelas péssimas condições em que são submetidas as populações confinadas, devemos reavaliar, de maneira radical, as noções que norteiam as atuais políticas de encarceramento dos que infringem as leis. Afinal, muitas das sugestões acima, que foram inspiradas por práticas já bastante comuns e recomendados como sensatas em diversos países, ainda podem acarretar, entre nós, severas penas de prisão sob o regime proibicionista atualmente em vigor.

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