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Claudio Naranjo - Entrevista - Xamanismo

Claudio Naranjo – Entrevista

Por:  Romeu Graciano

O psiquiatra, espiritualista e escritor chileno Claudio Naranjo é autor de uma obra cuja força eclética integra as suas profundas vivências dentro de diferentes tradições. Este incansável buscador é um dos fundadores do Instituto Esalen e sucessor de Fritz Perls, o pai da gestalt-terapia. Um dos seus trabalhos terapêuticos mais difundidos no país é realizado através do estudo e aplicação do eneagrama, ministrado por instrutores em diversos núcleos.

Esta entrevista foi realizada no início da década de 90, e, entre outros temas, aborda o novo xamanismo, o fenômeno da emergência espiritual no coletivo e a Ayahuasca como despertador da Kundalini. Na ocasião, a obra de Naranjo começava a ser melhor conhecida do grande público brasileiro, graças ao empenho de Marisa Thame, diretora do Instituto Thame de São Paulo.

Romeu Graciano: Quais são os principais temas, presentes ao longo da sua vida de buscador, que vêm concentrando mais a sua atenção?

Claudio Naranjo: Agora (1992) estou preparando uma coleção de artigos, que foram originalmente palestras, a qual chamo de Ensaios Transpessoais. Alguns são relacionados com o terapêutico, outro com a arte, outro com a espiritualidade propriamente, como a meditação. A meditação é um tema sobre o qual estou produzindo diversas coisas e, inclusive estou me propondo a publicar um segundo volume de Psicologia da Meditação (editado pelo Instituto Thame, 1991). O livro conterá um trabalho que fiz a pedido de uma universidade alemã, será bastante enciclopédico, com técnicas específicas de meditação de todas as culturas. Nele também penso incluir meus planos de trabalhar as interfaces entre a meditação e a psicoterapia.

Outro tema é o eneagrama(*), que, na realidade, é mais do que estou trabalhando especificamente, que são as suas aplicações à personalidade. Com o tempo, fui desenvolvendo uma forma terapêutica a partir das idéias básicas que recebi na escola do Quarto Caminho. E estou publicando nos Estados Unidos um livro com um título ambicioso de Neuroses e Caráteres, pois, mais que o eneagrama, é uma teoria geral das neuroses com base nos caráteres.

[ Nota: (*)O eneagrama é um diagrama composto de um círculo dividido em 9 partes, interligadas por 9 linhas, aplicável à compreensão de todos os processos imagináveis. Parte da tradição desse hieróglifo tem servido ao estudo das personalidades humanas, suas deficiências e potencialidades.]

A gestalt, com o conhecimento do eneagrama, é feita de modo muito específico. E tenho toda uma série de sessões, realizadas na Espanha, que está na hora de escrever. Assim, penso incorporá-la num livro sobre aplicações clínicas do eneagrama. A própria gestalt, na qual eu pessoalmente sou um expert, é outro tema. Tenho um livro publicado em castelhano, por sugestão de Fritz Perls, o criador da gestalt, que irá sair em inglês. Foi o primeiro livro sobre gestalt escrito por alguém que não fosse Perls.

RG: E quanto às demais aplicações do eneagrama, além da personalidade?

CN: Diz-se que elas existem, mas eu não sou especialista nelas. O fenômeno da oitava de um ciclo espiral, que se repete, certamente existe na escala musical. Isto me tem interessado, especialmente por ser músico. Estive em Jerusalém, onde dei uma palestra sobre a relação da escala musical com as séfiras, que são um esquema particular de cabala, muito semelhante ao eneagrama.

As séfiras são emanações divinas, os componentes essenciais da realidade de todo o plano. Têm um sentido psicológico e também um sentido metafísico. E as sete notas da escala musical têm uma relação muito estreita com as 7 séfiras, que, simbolicamente, correspondem aos dias da semana. Por outro lado, diz-se que o eneagrama, tal como a Árvore da Vida da cabala, é uma chave-mestra de todas as classes de processos. Porém, minha especialidade é psicológica.

RG: Você propõe, no livro Agonia do Patriarcado  Ensaios Holísticos Trinitários, o desenvolvimento de uma pedagogia espiritual. Em que bases esta ideia seria estruturada?

CN: Quando falo de pedagogia espiritual, nesse livro, falo especificamente de uma pedagogia do amoroso, que me parece ser o que mais falta. Porque toda a cultura cristã está dominada por esse mandamento do amor, sem que haja uma ajuda equivalente a como chegar a ele. Ama ao próximo como a ti mesmo e a Deus sobre todas as coisas certamente é a solução de tudo, é a pedra angular da saúde mental, da realização.

Mas para chegar a isto sabemos, neste momento, que é necessário, por exemplo, curar as feridas da infância. Pois, do contrário, teremos dores iguais às do nosso crescimento numa sociedade enferma. Teremos ressentimentos, vinganças entre nós mesmos. Necessitamos recordar, entender a nossa própria vida, nossa própria infância para chegarmos a perdoar. Inclusive necessitamos estabelecer contato com a nossa agressão para saber que precisamos perdoar. Logo, é necessária também uma metodologia, uma certa estratégia para nos convencermos de que é melhor perdoar. Eu creio que tudo isso que se está elaborando dentro do mundo terapêutico deve agora passar para o mundo da educação, ao mundo da espiritualidade. Porque tanto um quanto o outro têm-se empenhado em livrar-se da complicação do psicológico.

RG: Muitas pessoas vivem seus processos de emergência espiritual através de profundas crises. E acabam acreditando que a transformação interior é dolorosa. Existe verdade nisso?

CN: Não, essa é apenas uma forma. Creio ser muito certo o que dizia Jung quando se referia às sagradas neuroses, ainda que o mal-estar não se expresse em forma de crise, mas de modo mais lento, através de um tempo maior. É como se o mal-estar tivesse uma bênção. A pessoa mais cega não sofre tanto, é alguém que está enredada em todos os problemas da sociedade, foi infectada pelo vírus comum, transmitido de pais para filhos por intermédio das gerações, e que produz uma forma menor de humanidade, cria um ser muito distante do seu potencial.

Parece-me que a enfermidade psicológica é o incômodo que vai aparecer a uma certa consciência, a uma impossibilidade de se fechar os olhos. Também se pode dizer que é um chamado para se regular algo interior. Isso pode assumir a forma de crise. Há pessoas que, ao se darem conta de que o que estão fazendo da sua vida não lhes serve mais, têm uma conversão mais súbita, uma dor intensa que as corrige. A transformação não é tão dramática, pois também há um crescimento equivalente.

RG: É um fenômeno de transformação que tende a crescer no coletivo?

CN: Há claramente um fenômeno de contágio no espiritual. A consciência tem um aspecto contagioso, o que está acontecendo em grande medida. Há um despertar coletivo que acredito não ter precedentes, pois nem sequer nos primórdios do cristianismo existia um movimento de despertar tão amplo, com condicionamento correspondente da cultura. Parece-me que, por gerações e gerações, o caminho do místico, do buscador é um caminho solitário. E hoje, pela primeira vez, não só é massivo como tem de ser massivo. Necessita-se de uma transformação coletiva, e é como se isso fosse o natural no momento, é o que está ocorrendo nesta época apocalíptica. Por um lado, contribui para isso o contágio e, por outro, a crise objetiva.

Não se pode deixar de ver que estamos nos unindo. Então tem que se trocar não só o sistema, como também aquilo de que está possuído o sistema, que é a psique individual. Temos de ter um novo tipo de homem. Todos os sistemas políticos falharam porque quiseram promover a transformação exteriormente. De modo que, neste momento, a única esperança que temos é a transformação interior. Por isso termino o livro (Agonia do Patriarcado) falando do novo xamanismo, e estendo o termo novo xamanismo a todas as pessoas que estão numa transformação profunda, atravessando por esse morrer e renascer que é o único fundamento possível da sociedade renascida.

RG: É seu voto de confiança na criatividade individual?

CN: Sim, porque o xamanismo é muito criativo. E a sociedade tradicional é muito planificadora. Acredito que aquilo a que necessitamos chegar não pode ser planificado. Somente pode ser improvisado, artisticamente, criativamente, passo a passo, de acordo com nossas reações diante das circunstâncias. No caso do xamanismo, o interesse que há pelos xamãs do mundo, por suas tradições, é porque a cultura atual é implicitamente um pouco xamânica. É o fenômeno contemporâneo xamânico, não por imitação, mas algo assim como o cristianismo esotérico, que começou a despertar interesse porque se está redescobrindo que essas verdades são universais.

RG: Por falar em xamanismo, gostaria de saber como foi a sua experiência com a Ayahuasca e se as suas pesquisas prosseguem.

CN: Eu já estivera numa tribo colombiana do Amazonas, na região de Putumayo, mas não tive a experiência direta do uso xamânico da Ayahuasca. Foi num tempo mais recente que me senti seguro de querer participar do ritual do Santo Daime. Pareceu-me que existe aí todo um potencial para o uso mais ritualizado da Ayahuasca, mas não somente dentro do contexto cristão nem do contexto atual do Santo Daime. Se não houver problema legal, eu me interessaria muito num trabalho com a Ayahuasca num contexto tântrico. Pois estou convencido de que as substâncias químicas da ayahuasca são as mesmas do soma, da planta originalmente usada em relação com a religião védica, origem da yoga.

Há todo um campo, dentro do mundo tão sofisticado como o da meditação oriental, que também é suscetível de ser estimulado, e o mundo mântrico é coerente com o que se faz no Brasil com o uso da Ayahuasca para cantar. Pode-se dizer que este é um mundo mais refinado do uso técnico do som para fins espirituais

RG: A Ayahuasca, então, seria um despertador da kundalini?

CN: Tenho um artigo sobre isso numa revista americana chamada Journey for Mental Imagery e um trabalho que apresentei num congresso de antropologia ecológica, na Itália. Estou convencido de que o dragão da kundalini não é outra coisa do que esta vivência de grande liberdade interior que pode ser artificialmente produzida com a ayahuasca. Contudo, ainda que artificialmente produzida, pode ser cultivada, mas sem necessidade do estímulo original. O indivíduo pode ser um despertador da kundalini, se há prelúdio para uma prática sistemática de meditação, dentro das técnicas já conhecidas.

RG: Em Agonia do Patriarcado, você observa que a religião deveria vir acompanhada de uma psicoterapia. Por quê?

CN: Os sufis dizem que todo cajado tem dois extremos: o terapêutico e o espiritual. E tem-se querido divorciá-los artificialmente. Em certas pessoas está claro que não há capacidade de meditar, que não há capacidade para determinadas práticas que são partes de um trabalho espiritual, sem antes limpar certas coisas. O mal psicológico é inseparável do mal espiritual, porque o mal psicológico é ego. E o caminho espiritual não é outra coisa senão a dissolução do ego. A verdade está sempre presente, a verdade do que somos, o ser que existe em nós. Mas esse ego é o véu que se interpõe entre nossa consciência atual e nossa consciência possível.

As terapias tradicionais têm atendido ao ego somente porque é um problema que nos faz sofrer. A espiritualidade atende ao ego como um problema que não só é a causa de todo o sofrimento, mas, sobretudo, é causa da cegueira com respeito à realidade espiritual da vida. São níveis de aspiração diferentes, abordagens diferentes do religioso e do terapêutico, que eu creio que se podem complementar muito bem. Os terapeutas estão se dando conta de que a terapia cobra uma dimensão maior e mais real. É um fator muito potente que se incorpora a ela se se inclui o elemento espiritual, e isso é a essência de todo movimento transpessoal de hoje. Há uma tendência geral à espiritualização da psicoterapia.

RG: Gostaria de conhecer os motivos do seu interesse especial pelo budismo tibetano*.

CN: Acredito que em matéria de meditação, a contribuição do budismo tibetano é a mais sofisticada. Em matéria de aprofundamento da consciência, eu tenho tido a boa sorte de ter mestres em todas as tradições. Pude estudar com um discípulo do último patriarca taoísta, ser iniciado na meditação zen por D.T. Suzuki, ter estudado com vários sufis (inclusive sou chefe da ordem Mevlevi)… Apesar de ser um buscador muito sedento, e embora minha tendência original era ser uma escola eclética de meditação, tenho chegado a pensar que mais vale essa paleta que já está integrada ao budismo, que contém todos os recursos, desde o elemento de pacificação da mente até o elemento de culto, passando pelas práticas de visualização e uma série de outras. Sou eclético integrador, sendo que, somente no aspecto de meditação, penso que o sistema planejado pelo budismo hinayana, mahayana e os sete níveis do budismo tibetano formam um sistema tão grande e completo que eu próprio me sinto um estudante dentro dele. Todavia, acredito que concentro melhor meus esforços podendo estar inteiro nisso, em vez de tomar um pedaço daqui, outro de acolá

RG: É possível que estejamos caminhando para uma integração holística de todas as tradições?

CN: Acredito ser importante a compreensão entre as tradições. Não que elas tenham necessariamente de se integrar. Eu pessoalmente sou um integrador, e meu trabalho é tomado como um mosaico integrativo. Há pessoas que historicamente tiveram essas funções, e isso ocorreu durante muitos momentos da história em que se produziram novos sincretismos. Mas também creio que as tradições têm uma virtude específica para certas pessoas, e não que todo mundo tenha de ser eclético. É necessário respeitar outras tradições para a paz do mundo, para o bom entendimento das pessoas. Entender que o fundo de todas as tradições se encontra com o fundo de todas as outras tradições.

 

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